Os lírios, margaridas, gérberas e rosas que se avolumavam nos vasos do salão, formando arranjos que iam do amarelo ao rosa chá, não interessam à menina loirinha que vejo correr de um lado para o outro da festa, de vestido branco bufante e sandálias baixas. Está indócil.
Desde que viu a moça grande e adulta entrar na cerimônia – esta de vestido branco reto, com recorte que deixa ver as curvas dos ombros e do pescoço – não havia tirado os olhos daquele buquê pesado, meio arredondado, de rosas cor de sangue. Ficou horas buscando as flores com o olhar. Seguiu a noiva enquanto foi possível, as sandalinhas fazendo barulho no chão de pedra da mansão chique do Lago.
Ela tem quatro anos. É mais alta do que a média, ou sou eu que perdi definitivamente a noção da idade das pessoas? A menina é grande. Mas ainda está na idade em que as frases são literais. Brincadeiras, só as do parquinho e as debaixo do bloco – ou as do quintal da mansão, se a mamãe deixar. Nas palavras não: inadmissíveis. É uma criança grande. Quer buquê, mãe.
As palavras começaram a fazer sentido já no final da tarde, quando as moças adultas se juntaram no quintal, e não era para brincar.
– Vem aqui pegar o buquê, vem – a noiva chamou, doce, as convidadas já fervilhando atrás dela.
Era forte, essa noiva. Jogou as rosas vermelhas com tal impulso que elas foram parar no telhado da mansão. Corre gente de preto gritando, pegando escada, ajudando o outro a subir e a descer. Resgate cumprido. Sem ele, o ritual do bom matrimônio não segue em frente.
– Vem aqui pegar o buquê, vem – agora vai, pelo amor de deus, elas imploram.
A trajetória das flores faz lembrar aqueles gráficos de física dos estudos de balística do segundo grau. Elas saem das mãos da noiva, sobem, alcançam a altura máxima, descem com aceleração de 10 metros por segundo ao quadrado, desconsiderando a resistência do ar, é claro. Param na mão de uma loirinha. E ela há muito já passou dos quatro anos.
– Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhh – é o coro das mulheres
– Buéééééééééééééééééééééééééééé – a menina responde.
A partir dali, um abraço, não tem mais salvação. O chão de pedra caiu sob os pés calçados com sandalinhas. Os pais correm à cata de lírios, gérberas, margaridas, rosas cor de pêssego. Levam à guria. Nada feito. Os olhos denunciam. Os músculos da boca amolecem. Ela cruza o salão. Se agacha, esconde o rosto com as mãos. Desmonta. Explode. Fim de festa. Não adianta pegar essas flores dos arranjos, a gente já tentou, ela não quer – os pais advertem. Ela não quer. Esconde a cara na cintura da mãe.
A noiva se aproxima. Não sabe ainda se vai ser legal ou se deixa por isso mesmo, que negócio é esse de ficar fazendo todas as vontades de uma guriazinha assim, depois ela vira uma cocotinha chapinhada e mimada e ninguém sabe o porquê.
– Fiquei sabendo que tem uma mocinha muito triste aqui. É você?
– Éééééééééééééééééééééééé
– O que aconteceu?
– O bu-u-quê-êêê-êêê-êêê
– Mas eu faço um só para você, pego as flores aqui do vaso, ó, vai ficar lindo (ninguém avisou a noiva não??)
– Não queeeeero. Que-ro-o-ver-me-lho...
– Mas a minha irmã pegou o vermelho. A gente vai ter de ir lá perguntar se ela te dá. Só que ela nem vai querer falar se vir você assim chorando
– Tá bom, eu-vou-pa-rar-de-cho-raaaaar
– Isso, pára sim
– Eu quero, mas eu não consi-iiii-iiii-go – A menina respondeu, a boca já toda babada. Aiaiai se começar a chorar de novo. A gente te expulsa da festa, sem piedade e sem buquê.
As duas de branco andam até a varanda. Irmã gente boa. Tolerante. Negociação rápida. A festa volta. O buquê, que provavelmente tem rosas equivalentes a um quarto do peso de uma criança de quatro anos, está nas mãos de quem sempre deveria tê-lo recebido. A menina sai se rebolando. As sandalinhas cantam, de contentes que estão. Dá para adivinhar as palavras ditas ao papai: olha, olha, eu que peguei. E assim a coisa se repete. Ao papai, à mamãe, à titia, ao fotógrafo, aos músicos da banda, aos colegas de trabalho do noivo, à prima de segundo grau da noiva e até à vigia do banheiro, despertada de repente enquanto sonhava sentada em uma cadeira de plástico.
Ela se aproxima. Suspiro. Ela sentencia.
– Esse lugar onde você está não é para se sentar.
Se eu tivesse quatro anos, responderia:
– Seu buquê é ridículo. E você não manda em mim.
Mas como já passei da infância há mais de década, preferi o bom e velho e razoavelmente educado
– Hã?
– Isso não é um sofá. Nem uma cadeira. É uma cama.
– Ah, tá. Cadê o travesseirinho dela, então?
– Tá aqui, ó. Tem dois – ela aponta para duas almofadas em forma de cilindro, cada uma em uma ponta do móvel.
– Ah, tá. Mas eu tô de saia, se eu deitar todo mundo vai ver minha calcinha. Prefiro ficar sentada mesmo, você deixa? – Ela balança a cabeça, dizendo sim.
– Olha o que eu peguei. (Tava demorando a dizer isso)
– Legal. Gostei. Parabéns. – Eu sorrio. Um pouco de tolerância não faz mal a ninguém. Ela ri de volta.
– Agora eu vou me casar.
– Sua mãe já deixou?
– Já. E a sua?
– Também. Ela disse que eu posso porque eu já estou grande. Daqui a pouco podem até dizer que estou passando da hora. – Ela me olha com cara de interrogação.
– Agora vou encontrar um príncipe. Dá licença – As mulheres reclamam que não acham um marido, depois são as mais numerosas nas estatísticas de divórcio do IBGE porque descobrem que o gentil mancebo não é assim, um príncipe. Vai entender.
– Vai com fé – e os meus olhos já querem fechar, depois de um dia inteiro de festa. Minha cabeça caberia direitinho nas tais almofadas cilíndricas, mas minha mãe disse que dormir no casório dos outros é falta de educação.
Ainda vejo quando ela volta à mesa dos pais. Pegam bolsinha, carteira, chave do carro e buquê para ir embora.
O carro acelera na pista que vai dar na avenida principal do lago sul. O príncipe a espera ali, ao dobrar a rua, atrás das cercas vivas que protegem as mansões.
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