Num tempo não muito distante, há uns 60 anos, as moças más (leia-se: solteiras e grávidas, porém de famílias tradicionais) eram mandadas para lugares isolados no interior para viverem a gestação sem macular o nome de seus pais.
Maria Rosa, 16 anos, era uma dessas moças. Não resistiu. Quando conheceu Júlio — ou melhor, Julinho —, dois anos mais velho do que ela, num baile promovido pelo clube que ambos frequentavam, não suportou apenas o protocolar namoro de mãos dadas. Tinha o consentimento dos pais para namorar, mas precisou encontrar suas formas de entregar o rosto, os lábios e a virgindade nos cinco meses que se seguiram desde a festa.
Embora não parecesse, esse Julinho era diabólico.
A moça sabia que algo só podia estar muito, muito errado quando, numa noite, pôs para fora todo o requeijão da roça que havia comido no lanche — e que comia desde pequena. Seu desconforto mensal estava atrasado havia semanas. Conseguiu às escondidas uma consulta num ginecologista que atendia num bairro afastado do centro de Belo Horizonte. O médico acabou confirmando a gravidez: sete semanas.
A notícia chegou aos pais numa carta escrita em meio a lágrimas durante o recreio da escola. Foi um escândalo, é claro. Os avôs e a avó paterna, se estivessem vivos, teriam um ataque. O pai, que alternava seus dias entre a capital e as muitas fazendas e casas de descanso da família, trancou os filhos menores no quarto e só não encheu Maria Rosa de sopapos porque a mãe, Carolina, não deixou. Preferiu ela mesma dar umas sacudidas na garota. A avó materna, dona Constança, chorou baixinho numa das poltronas de canto da sala de visitas.
— Maldição, maldição — repetia a senhora.
A família resolveu mandar Maria Rosa para longe dali, no interior de Goiás. Os Camargos tinham uma bela residência colonial de férias na cidade de Corumbá. Próxima ao rio e distante do centro, a casa parecia um lugar apropriado para esconder a dona de uma barriga que começou a inchar rapidamente. O caseiro que já trabalhava ali ganhou a companhia de uma das empregadas do clã, que saiu de BH para atender a garota no que ela precisasse.
Mãe e avó iriam visitá-la a cada mês. O pai, por sua vez, ficou tão desgostoso que resolveu: a partir dali, a filha mais velha e uma mula qualquer da fazenda tinham o mesmo significado.
Julinho, que tinha os pais falecidos e morava com uma tia rica, não quis saber de casamento (a bruxa não permitiu; não queria perder os favores sexuais do rapaz). E, para não descobrir o quanto doíam os tabefes de Anselmo Camargo, aceitou dar o próprio sobrenome ao filho que teria com a moça. Num bilhete secreto, porém, prometeu à namoradinha que lhe escreveria cartas para acompanhar a evolução do bebê.
Maria Rosa estranhou a vida solitária na casa de Corumbá. Um humor quase suicida tomou conta do corpo. Em pouco tempo, passou a odiar os preciosos livros que havia levado, as ferramentas de bordado e costura que lhe eram tão caras e, sobretudo, a curiosidade de quem vivia perto dali e espiava sua barriga com interesse. Num desses dias de mexerico, atendeu a porta e recebeu uma vizinha que veio visitá-la a pretexto de oferecer-lhe um bolo de fubá.
- Muito grata pelo bolo — disse ela, esforçando-se para fazer uma cara agradável.
- Com quanto tempo você já está? — quis saber a senhora.
- Cinco meses — Maria Rosa murmurou.
- E o pai, não vem te visitar?
- É para isso que você veio aqui, então, sua medíocre? — explodiu, empurrando de volta a travessa de bolos para a vizinha — Ele virá sim, virá para me tirar dessa cidade horrorosa, me afastar de gente inferior como você. Saia! — ordenou, batendo a porta.
Encostou-se na porta e agachou respirando fundo, com raiva. Dalva, a empregada, veio correndo com um copo de água com açúcar na mão. Levou a garota para a varanda em frente ao rio. Maria Rosa tomou o líquido e passou o resto do dia lá, onde havia deixado os materiais de costura. Até a noite chegar, olhou para o rio e permaneceu em silêncio, espetando os dedos com as agulhas.
Continua: parte 2, parte 3.
2 comentários:
Companheira,
Vc é um talento só!
Obrigada, obrigada! :-D
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