quarta-feira, junho 22, 2005

Elogio da sombra

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.

Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas casas velhas
que ainda chamamos o Sul.

Sempre em minha vida foram demasiadas as
coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos
para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.

Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno,
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.

Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinarmarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.

(Jorge Luis Borges)

Um comentário:

Anônimo disse...

Ahhhhhhhh.... hehe... eu sei que você se lembrou de mim,quando postou, né? risos. Eu adoro Borges. Bjs
Ale Carvalho