quinta-feira, janeiro 08, 2009

Dois

Achei-os praticamente na porta de casa, na pista de entrada do bloco. Ambos cabiam em minhas mãos, que estão longe de ser grandes. Tão frágeis. Podiam ter sido brutalmente atropelados, chutados por uma criança sem-noção ou incomodados pelo focinho de um cão curioso. E, ao mesmo tempo, tão fortes. Resistiram à chuva, aos insetos do jardim próximo e à dureza do asfalto sem perder o que tinham de mais belo: as formas arredondadas, perfeitas; e a pele brilhante, suave, sem uma mancha. Desliguei o carro e fui correndo loucamente no chão liso para salvá-los. Quase fui atropelada também.

Na subida do elevador, ainda pensei: levo-os para a casa de mamãe? Lá, existe mais espaço, mais infra-estrutura. E há a mamãe, que tem uma mão boa para cuidar de seres delicados. Mas, como acordei num dia doido, decidi cuidar dos dois sozinha. Na falta de um lugar melhor, coloquei-os numa cesta linda enorme, de capim dourado, que ganhei de uma amiga no Natal de 2007. Ao que parece, ninguém achou ruim. Nem meu amor, que foi contemplar os bebezinhos quando chegou em casa do trabalho.

Ninguém me ensinou, mas logo vi que a evolução dos meus dois frágeis dependia de um bocado de observação. Do sol e do calor nas horas certas. De alguns toques. De nenhuma pressa. E de zero julgamento: eu fazia idéia de que talvez eles não crescessem como os demais, mas isso não os tornava menos adoráveis. Deliciava-me à medida que ganhavam cor e viço. Os dias passavam.

Num deles, não havia dormido quase nada. Alguém pode pensar: é normal, acontece. Mas acordei com o despertador do celular berrando, quase tão siderada quanto naquela tarde em que saí correndo no asfalto liso de chuva. Lavei os olhos, escovei os dentes e me perguntei o que era aquilo na minha cesta enorme, linda e chiquérrima de capim dourado fair trade. Ah, meu Deus. São aqueles dois.

Tirei-os do berço improvisado e fui direto para a cozinha. Não podiam falar – se pudessem, talvez implorariam para que não fizesse o que fiz. Peguei a primeira faca que achei (uma de serrinha, com cabo azul-escuro) e dividi ao meio a maciez de suas carnes. Dei adeus às peles cheias de cor. E, com os dedos já em contato com seu interior oleoso, arranquei a única parte incapaz de ser processada pelas minhas vísceras. Foi direto para o lixo. O resto conheceu em segundos as lâminas do liquidificador. Dividiu-se grotescamente, espirrando sua substância verde nas paredes da máquina.

Pobres abacatinhos. Encontrei-os ainda bebês na pista de entrada do bloco. Amadureceram. Tiveram seu destino. E o pior é que eu gostei.

2 comentários:

Helga disse...

Sabia!! Hahahahahah. Aí tinha coisa nessa sua descrição. :P

Anônimo disse...

Ai, que susto!!! Logo imaginei dois cachorrinhos lindos numa cestinha, já estava até pensando: que jornalista simpática e solidária, quase foi atropelada para salvar os dois bichinhos... Bem, apesar da história ser outra, não necessáriamente conforme a minha imaginação manda, parabéns pelo blog. Muito legal. Ah! Adoro fados. Agora, vou ouvir um pouco do que temos aí.