quinta-feira, janeiro 15, 2009

Não

Em mil ocasiões, eu li teorias (todas opinativas e nada científicas, é bom avisar) sobre a incapacidade dos brasileiros de dizer não. Segundo os tais textos, nossa reação varia entre enrolar (falar que sim, mas depois apresentar uma desculpa qualquer para desistir), dar um perdido (por exemplo, prometer que vai ligar e, depois, nunca mais fazê-lo) ou deixar a coisa no ar (“vamos ver” é uma frase ótima para isso). Até para isso nossa famosa criatividade nos ajuda: supostamente, sabemos vetar, por limites ou manifestar nosso desinteresse sem causar mágoas imediatas ou passar por malvados.

O curioso é que, recentemente, me dei conta de que tem muita gente, cada vez mais gente, aliás, dizendo “não”. Mais estranho ainda: a palavra nunca é usada no sentido para o qual ela existe. Essa é a definição do Houaiss: “Advérbio. Expressa negação como recusa absoluta a uma pergunta ou resposta; como recusa qualificada às situações anteriores; como contestação seguida de nova versão à pergunta ou resposta”. Não para por aí. Recomendo que deem uma olhada no dicionário para ver o texto completo, com exemplos e tal.

O “não” tal qual eu tenho ouvido por aí virou uma bizarra muleta de linguagem. Uma introdução a qualquer frase. Para usar uma definição nerd, se incorporou à função fática da comunicação (vejam aqui um texto simplinho sobre o assunto). Passou a ser usado mais ou menos da forma como os americanos usam o “It’s like”, e os franceses, o “Pffffffff” (pense num francês mal-humorado bufando). Não sei se é um comportamento brasileiro ou puramente brasiliense. Quem é de outras cidades pode dar uma opinião lá nos comentários. Observem e me digam.

No último sábado, quando já estava com vontade de escrever sobre isso, achei o exemplo ideal – até para mostrar que esse uso torto do “não” pode causar sobrancelhas levantadas, mal-entendidos, etc. Estava numa sorveteria perto de casa com uma galera. Como ainda ia chegar mais uma pessoa e ela não teria onde se sentar, minha amiga pediu uma à moça da mesa ao lado. A resposta:

- Não... Pode sim, claro!

Em um milésimo de segundo, minha companheira de mesa abriu um olhão como quem estivesse tentando entender se ia ou não conseguir a tal cadeira.

Senão vejamos: a jovem do nosso lado era uma louca, esquizofrênica e contraditória? Quereria ela sacanear gratuitamente a minha amiga? A entonação da primeira palavra era completamente diferente do resto da frase para tentar comprovar alguma das questões anteriores? Negativo para as três perguntas. O “não” estava mesmo deslocado do resto da fala. A maior prova disso é que a moça nos cedeu rapidinho a cadeira.

Tenho vários outros exemplos que vou ouvindo no trabalho e em conversas outras, mas vou usar só esse mesmo para o texto não ficar muito grande (são quase 2 da madrugada e amanhã preciso acordar cedo). Acho que me fiz entender.

Seria esse um vício de linguagem dos novos tempos? Um substituto light à feiura do gerundismo (“Não vai estar dando para estar rolando”, etc.) que se infiltrou na língua nacional por meio dos manuais de telemarketing? Um novo motivo para os nossos estudiosos escreverem textos e mais textos? Por enquanto, fico com uma resposta supostamente à brasileira: veremos. Agora, preciso dormir.

12 comentários:

Anônimo disse...

Há uma forma de expressão tipicamente pernambucana que é muito parecida com isso. É o seguinte: mesmo para negativas, o cabra sempre começa a frase com o verbo.

- Queres sorvete?
- Quero não.

- Vamos almoçar fora?
- Vamos nada.

- E aí, tu sabes como é que se faz isso?
- Sei não.

É lindo demais!

Carlos Alberto Jr. disse...

Aqui em Angola o povo tem outra mania.
Quando damos bom dia, boa tarde ou boa noite, os angolanos, em geral os mais humildes, respondem de duas formas.

Forma 1: Obrigado, sim!
Forma 2: Sim, obrigado!

E não desejam bom dia nem boa tarde nem boa noite. Só agradecem.

Anônimo disse...

Ainda não reparei isso Mari, mas vou começar a prestar atenção, depois venho te contar tudinho sem tirar nem pôr. Hehehe...

Paula Menna Barreto Hall disse...

hummm, vou prestar atenção. acho isso ótimo, só me dá ainda mais trabalho para tentar ensinar um pouco de Português e hábitos brasileiros pro senhor meu marido!! beijocas

Anônimo disse...

Mari, o único "não" que consegui escutar é aquele típico e antigo que todo mundo conhece, e que é mais ou menos assim: "Nãaaaaaooooo!!!!! Não diga! Conta mais, conta tudo...." Mas esse, convenhamos, às vezes faz até bem... Hehehe

Mari Ceratti disse...

Acho que vou começar a andar com um gravador escondido para tentar obter um exemplo sonoro que comprove a minha teoria. :-)

Alexandre disse...

Há tantas observações a fazer sobre seu texto. Primeiro você começa seu texto "bombardeando" afirmações e teorias nada CIENTÍFICAS (ponto positivo pra você!)- mas logo em seguida solta um "a palavra[a palavra 'NÃO'] nunca é usada no sentido para o qual ela existe". Como assim?!
O exemplo que vc trouxe não deixa dúvida do sentido do "NÃO", tanto é verdade, que você usa reticências:
-Não...pode sim, claro !

O sentido é o mesmo. A moça da sorveteria poderia ainda ter dito:
- NÃO HESITE, pode sim, claro !
- NÃO SE PREOCUPE, pode sim claro!
- NÃO TEM PROBLEMA, pode sim claro!
Mas a língua também opera por silepse, que vc representou brilhantemente com "..." (os três pontinhos).Essa teoria não é sua, é o DISCURSO que permite a língua operar por silepse.A palavra "não" não mudou de sentido, não nesse caso.

Mari Ceratti disse...

Oi, Alexandre, vamos lá:

O que eu quis dizer é que palavra "não" existe, em sua forma original, para ser usada nos sentidos de negação, recusa e contextação que descrevo no texto (com a ajuda do Houaiss).

Da forma como tenho ouvido por aí -- preciso descrever mais exemplos, aliás --, a palavra está sendo usada de uma forma quase que involuntária e totalmente desconectada do significado do restante da frase. Não tem nada a ver com silepses ou quaisquer outras figuras de sintaxe. É uma muleta mesmo.

Você fala que o "não" da moça da sorveteria poderia significar "não hesite" ou "não tem problema". Pode até ser. Mas existe outra coisa que deve ser levada em conta no entendimento da língua oral: a entonação, a intenção. No caso específico desse exemplo que descrevi no texto, se você tivesse visto a cena, sacaria que houve duas intenções completamente diferentes no modo como a moça respondeu à pergunta. Tanto é que não fui a única a estranhar a resposta.

Bom, é isso.
Abs e volte sempre.

Mari Ceratti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alexandre disse...

Mari, entendo quando quer dizer que a palavra "não" existe para esta finalidade: ser usada no sentido de negação. Mas é para isso mesmo que ela serve.
Não entendo como pode concluir, em exemplos como aquele, que a palavra está sendo usada "...totalmente desconectada do significado do restante da frase.." e por isso é uma "muleta".
Para que isso fosse verdade as palavras deveriam relacionar-se SEMANTICAMENTE, o que não é verdade; porque as palavras se relacionam mesmo é SINTATICAMENTE.
Alem do mais, você também diz que para o ENTENDIMENTO DA LÍNGUA ORAL de alguém deve-se levar em consideração a ENTONAÇÃO e a INTENÇÃO. Ora, em se tratando de línguas, a ENTONAÇÃO tem a ver mesmo só com fala porque é uma caracteristica natural dela. O ENTENDIMENTO ou compreensão tem a ver mesmo com significação, que nada tem a ver com entonação.
E a INTENÇÃO nada tem a ver com LÍNGUA ORAL: a moça da sorveteria poderia, sem falar uma palavra, ter tido as mesmas INTENÇÕES comunicando-se só com a nuança do rosto.
Mas a questão não é essa!
A questão é entender que a
SINTAXE( palavras em relação às palavras) e a SEMÂNTICA(palavras em relação às coisas) de uma língua são dois critérios bem diferentes e que a PRAGMÁTICA(palavras em relação às pessoas), critério dentro do qual a fala da moça da sorveteria deveria ser analisada neste caso, também é bastante diferente. É dentro desse último critério que podemos concluir que na fala daquela moça não houve mau uso do “não”e sim a silepse.

Mari Ceratti disse...

Oi, Alexandre,

Vou colocar abaixo mais exemplos de diálogos que ouvi para ilustrar minha interpretação sobre o uso do "não".

Antes disso, porém, faço um pedido: agradeço se você puder evitar falar ASSIM, com palavras inteiras em maiúsculas, nos seus comentários. Normalmente, a comunidade blogueira encara isso como o equivalente ao GRITO na conversa ao vivo. E acredito que gritar não seja a sua intenção.

Senão vejamos. Anteontem, por exemplo, ouvi o seguinte papo entre um rapaz e uma moça.
- O trabalho melhorou muito desde que a fulana substituiu a sicrana.
- Ah, não, a fulana é tudo de bom.

Para que utilizar o "ah, não" quando se pode usar, entre outros termos e expressões, "realmente", "de fato", ou "concordo"?

Outro exemplo:
- Tiveram que sair do prédio de tanto que os vizinhos reclamaram.
- Não, o que eles faziam lá era baixaria.

Nesse exemplo, o "não" é, mais uma vez, involuntário e desnecessário. A palavra nada acrescenta à frase. Portanto, torna-se muleta, vício de linguagem. Se ela for retirada, a gente vai continuar interpretando-a da mesma maneira.

Alexandre disse...

Mari, desculpa, não quis te assustar nem gritar contigo. O meu objetivo com as palavras maiúsculas era chamar atenção para o que é importante. Agora, para produzir o mesmo efeito vou utilizar as aspas, ok.
Vou começar com duas afirmações no terreno científico da linguagem:

1- "o pensamento é muito mais rápido que a fala"

2- "as palavras não são exatas, é a 'leitura delas' é que é"

Vamos ao primeiro exemplo que você mesmo deu:

A- O trabalho melhorou muito desde que a fulana substituiu a sicrana
.
B- Ah, não, a fulana é tudo de bom.

Em "A" há duas orações, certo?
o trabalho melhorou muito (1)
a fulana substituiu a sicrana (2)
"B" no diálogo é apenas o desdobramento de "A", veja:

"a fulana substituiu a sicrana => “a fulana é tudo de bom".

"o trabalho melhorou muito => “'Ah, não' (desagrada mais)”

Agora respondendo a pergunta: Para que utilizar o "ah, não" quando se pode usar, entre outros termos e expressões, "realmente", "de fato", ou "concordo"?
R.: porque a língua é também, como disse acima, pragmática ou seja, existe uma relação das palavras com o falante delas. A pessoa que disse "ah, não" sabe, que esse termo utilizado produz um efeito proporcional a semântica da frase "o trabalho melhorou muito" ou seja "[não] desagrada mais" embora ela não possa explicar essa correspondencia com precisão.
Com o segundo exemplo ocorre o mesmo:

C- Tiveram que sair do prédio de tanto que os vizinhos reclamaram.

D- Não, o que eles faziam lá era baixaria

Também em duas orações, os desdobramentos no diálogo:

tiveram que sair do prédio => "não (estão mais presentes)" => "não (se meterão mais em encrenca)"

os vizinhos reclamaram(deles) => "eles faziam baixaria lá"

Por isso o "não" não é involuntário ou desnecessário porque acrescenta a frase um novo sentido. A leitura e interpretação desse "não" vai depender de por em prática uma das duas afirmações com as quais eu começei este texto: a de número (2) .